Textos

quinta-feira, 24 de março de 2022

NÃO SEI O QUE HOUVE COMIGO


Não é de agora que me dei conta da minha coragem. Já enfrentei situações cabulosas, cheias de ódio, perseguição, burrice e humilhação, mas segui em frente. E muitas dessas lutas eu enfrentei sozinho. Sozinho mesmo, sem ninguém, sem vontade de desabafar com quem quer que seja. Ninguém me levaria a sério, ninguém me daria ouvidos. Não o ouvido que eu precisava. E hoje eu sei da força que guardo. Já tive a vez de usar dessa força e só ter consciência tempos depois. Hoje me reconheço melhor.

Estou com quase 28 anos. Estamos flexibilizando o uso das máscaras e isso anuncia que a pandemia está chegando ao fim. Perdemos pessoas incríveis, famosos e anônimos. Penso na força de quem lutou contra a morte, penso nas famílias que perderam pessoas queridas. Imagino que não seja fácil. Todos enxergaram a própria coragem.

Não tive COVID. Ou quem sabe, só não testei positivo. Mas não tive essa dor. Eu tive outras. Não tive náuseas ou falta de ar (não falta de ar decorrente do vírus), mas sofri. Sofri fechado em mim mesmo. Chorei trancado no quarto, olhando pro teto escuro. Foi doído, dilacerante. Não sei o que houve comigo. Tenho algumas suspeitas, mas não que eu tenha pensado muito quando a lágrima rolava. O tempo agonizante sempre perturbava meu café da manhã.

Eu tô aqui. Saí da pandemia vivo. Embora às vezes tenha dúvidas. Mas com certeza estou de pé, com mais ansiedade e alguns fios de cabelo branco. E embora tudo pareça confuso – igual esse texto –, irei me rebelar. Mais uma vez. O entorno que me aguarde. A força que mora em mim quer muito sair para dançar. Só sei que escondo coisas.

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Fodidamente louca


Era dia do Natal quando te vi. Estava gélida na porta do mercadão, sozinha. Te reparei da cabeças aos pés, confesso. Olhar penetrante, sardas, transparência da saia preta em camadas, tênis e dois ramos de cabelo na cor ciano soltas nas laterais do rosto. Parecia nervosa e satisfeita ao me ver. E como indício da fobia social, trouxe um bolo de cartas Uno para garantir que interagíssemos.

Você é fodidamente louca... Doida de pedra. Tão louca que sinto seus olhos em mim até hoje. Parecia contente e admirada comigo, mas eu não sabia se nossa conversa a envolvia de verdade. Podia ser tudo mentira. Você sorria e se distanciava. O corpo curvado sinalizava a introversão, o peso. Me olhava como se quisesse decifrar, atenta a cada gesto. Fui observado, lido - até no balanço das pupilas. Era difícil disfarçar.

Inicialmente tive dúvidas se embarcava na conversa. O medo de irritá-la com questionamentos invasivos existia o tempo inteiro. Medo de decepcioná-la com minhas histórias e ter minha vida desmascarada, assim, sem dó nem piedade. Você é sincera, preguiçosa, intrigante. Por sorte eu soube me controlar.

Sentamos no banco da praça por opção sua. Sentiu medo do meu convite para a casa de madeira à beira-mar. Compreendi, de fato. São atravessamentos que nos perpassam incontestavelmente. A nova chegada de um sujeito na vida de uma mulher é sempre delicada, mesmo que este não seja um serial killer perverso. Felizmente você se abriu para mim.

O banco estava molhado e nós topamos nos manchar. Ignoramos a chuva, a roupa, o quiosque barulhento e a tentativa de fingir sanidade. Eu sou insano, curioso e me cativo pelo mistério. Você entregou quase tudo que eu precisava.

O papo foi revelador. Você é bipolar, tímida, cismada e demissexual. Estávamos entregues. Por incrível que pareça, seus planos suicidas não me assustaram. A forma que me olhava desconcertava mais que a confissão de se matar afogada com pesos nos pés. Ali eu soube da nossa conexão. Nós nos dissecamos juntos, em plena luz da orla de Piatã. Me abri com você mais do que devia, mesmo quando existia a vergonha de reclamar do preço do sorvete. Nossas verdades sendo jogadas garantiram o melhor encontro de 2021.

Gosto de como me fez sentir. Não me julgou, não reprimiu, não estranhou meu desejo por homens. Foi aberta e disposta. Sorria com o dente incisivo central marcante sempre que eu me exibia. Você me indagava mais e mais, à ponto de esquecer da bolsa de cartas.

A conversa fluiu, leve e despretensiosa, tanto que acreditei nos seus convites. Foi muito fácil fantasiar com novos encontros nos rios da bacia hidrográfica baiana. Nosso futuro tem tudo para constatar. E só acredito nisso por uma razão: sou tão louco quanto você. Fodidamente louco.

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

O MAESTRO FALOU DE SUAS PAIXÕES


Bati na porta de sua sala com medo de incomodar. Apesar de querer conhecê-lo, eu sabia da magnitude atmosférica que eu iria encontrar. Era ele, sentado entre seus aparelhos, seguro de sua relevância e majestosidade.

Empurrei a porta de vidro e soltei um oi delicado. Ele estava aflito com um cisco que caíra em seu olho direito e mal pôde se virar para me ver.  "Oi, pode entrar", disse enquanto se esticava para trás, lavando-se com colírio.

"Bom dia. Eu sou Fabio. Me aconselharam a falar com o senhor."

"Sente-se. O que tens a dizer?", se virou com os cílios encharcados.

"Na verdade, não tenho o que dizer. Prefiro te ouvir".

E assim ele desatou a falar. Sentei num banquinho amarelo à sua frente e arregalei os olhos por cima da máscara, atento à tudo o que ele dizia. O maestro falou de suas paixões e de como a sétima arte surgira em sua vida do nada, por acaso, enquanto trabalhava de eletricista nas ruas de Ondina. Conheceu o cineasta Glauber Rocha e percebeu que dali em diante sua vida ganharia um novo sentido, com muitos rolos de películas. Mostrou altivez quando se lembrara do valor imensurável que é estar de posse da 2ª câmera dos irmãos Lumière, feita em 1915, a famosa caixa de fósforos vinda de Paris. Meus olhos brilharam.

Ainda com a pupila irritada me conduziu para outra sala cheia de caixas. Tudo organizado com zelo, recheado de memórias importantes e parte de nossa história na ponta da língua. Vi muitos cabos, fios, projetores, mesas de corte, câmeras de todo tipo, microfones, discos, fitas pornográficas, monitores de referência e cartazes do cinema nacional. Era um verdadeiro baú do tesouro. Ele esbanjava orgulho do seu acervo e me envolvia com seus encantos de períodos que não vivi.

Apesar da idade e andar vagaroso, falava quantificações com precisão de um jeito lúcido, conhecendo seus itens como a palma da mão. Se não me engano, 3.872 materiais colecionados, contando com a guarda de duas das dez câmeras com manivela, construídas na Alemanha. E apesar de sua grandeza em ser respeitado no meio e ganhar novos itens para seus arquivos, lamentava não poder oferecer-lhes espaço melhor na cidade de Salvador.

Nosso primeiro contato me proporcionou uma mistura de emoções. Ao mesmo tempo em que me alegro por tê-lo visto aqui, ainda vivo e lúcido o bastante para reclamar articuladamente dos ciscos que caem no olho direito, lamento o fato de não poder alegrá-lo com minhas próprias ações, fazendo com que seus cerca de 3.872 itens sejam salvaguardados como lhes é necessário.

Roque Araújo ainda se mantém de pé. A escritura fílmica de nossa história está preservada em seus acervos. E no que tange ao meu bem querer, levarei sua luta comigo do jeito que eu puder.



quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Eu sei que você não quer

Lembra quando comemos rocambole no meu quarto? Quero de novo. Foi lindo te ver com as pernas estiradas em minha cama. Foi gostoso te ter em meus lençóis, sujo da cobertura de chocolate. Seu beijo ficou gostoso. Sua língua ficou mais quente.

Pena que a gente não consegue se enganar. Eu sei que você não quer. Apesar de dizer o contrário, nós dois sabemos que não sou o que procura. Eu tenho esse jeito fechado, reservado, quase tímido. Minhas músicas só tocam com o fone grudado no ouvido. Você é o oposto: enérgico, dançante, grandioso. Seus vizinhos não te suportam com música alta no feriado. Cuidado com esse som. Cuidado comigo. 

Você não sabe me tocar. Apesar de me querer, você tem dúvidas. Eu sei que tem. O garoto que viu no shopping tem mais a ver contigo do que eu. E ele é bonitinho, eu sei. Eu vi a sintonia em vocês dois. Você não é para mim.

Você disfarça, mas eu não caio. É puro jogo. Você é assim, assim desse jeitão. Tentou me engabelar e já notei em pouco tempo. Você não quer. Serei mais um da coleção. Seu papo te entrega nas entrelinhas. 

Te suplico que me ame. Eu quero e sei que não devo. Me sinto mal, me sinto errado. Você é volúvel e eu preciso desse amor. 

Tinha que ser agora, sem delongas. Não tenho tempo a perder e já me perdi demais com isso. Não é fácil para eu admitir.

Não veja outros enquanto estou fora. Olhe para mim. Permita que a gente floresça. Seríamos imbatíveis se você me desse chances. E falo de chances maiores. Grandes chances, do seu tamanho. Sem essa de velocidade. Sem ser efêmero. Sem mentir para mim.

segunda-feira, 19 de julho de 2021

QUERO DESFILAR SOZINHO

 


Seus elogios são tentadores. Eu corro o risco de entrar na história que você quer escrever para mim. Talvez não acredite porque se apegou aos estereótipos que nos circundam, mas não sou isso. Não posso esquecer de não me afastar de mim. Prefiro fugir de você.

Minha pele te confunde. Eu sei que você gosta do meu jeitinho. Minha delicadeza é sofisticada de um jeito digerível e você me idealiza de um jeito torto. É romântico, eu sei, mas não sou tão intenso. Eu tenho cara do cara ideal para conhecer sua família e certamente agradaria sua avó, mas eu nunca me quis assim. Você se perde nos próprios planos.

Eu corro o risco de me deixar levar por seus gracejos e construir a história que você inventou. Não vivo da sua imaginação. Não posso me perder de mim. Tenho medo de dar match no tinder e acabar casado com um homem que não admiro. Era só sexo, nada de vida à dois. Já pensou se a gente leva o caso adiante por puro ego? Eu vou surtar.

Só de me imaginar dividindo uma casa com uma bicha soberba que usa echarpe me estremeço todo. Comprar casa juntos e adotar três crianças? Tô fora! Cachorros do casal, conta conjunta, sogra mexendo em minhas gavetas e sogro fazendo churrasco na varanda? NÃO! 

Saiam daqui! Quem são vocês?! Esse rapaz é o meu marido? Mas nem o admiro. Nem politicamente nem emocionalmente. Detesto esse olhar superior do almofadinha que me raptou. 

Não quero viajar contigo pra Europa uma vez por ano. Não quero morar nesse bairro e nesse apartamento. Vou acabar pulando lá de cima numa crise depressiva.

Eu quero o meu cantinho. Sabe o sonho da casa própria? Só que com meu próprio dinheiro. 100% do pagamento saindo das minhas economias. Tudo meu. Só meu. E eu te expulso quando eu quiser.

Quero andar pelado na sala vazia, sem visitas, com janelas abertas. Quero desfilar sozinho, com a bunda de fora, respirando o aroma do meu sofá dedetizado. 

Desculpa, você errou. O cara ideal não sou eu. Eu só queria a experiência de uma noite e você me levou para esse devaneio. Me esquece.


terça-feira, 6 de julho de 2021

Quero ser Fernanda Young


Se me perguntassem o tipo de escritor(a) que me motiva definitivamente seria Fernanda Young. Eu amo Fernanda Young. Seríamos um só se eu fosse mais inteligente. Ela é linda, inteligente, teimosa. Eu seria uma mulher deslumbrante, avassaladora, sedutora. Faria uma capa da Playboy pra pagar de gatinha com um batom vermelho e deixar os taradões em êxtase com a minha desenvoltura. Sou alongado, juro. E nem faço yoga. Faria isso porque gosto de causar esse efeito. Seduzir é muito bom.

Acabo de ver a entrevista do Alexandre Machado e da Maria Ribeiro no programa do Pedro Bial. O Pós-F (peça transmitida online) teve seu encerramento no último 4 de outubro, que é meu aniversário. Achei que isso pudesse ser um sinal da minha conexão sobrenatural com a Fernanda. É forçado demais, eu sei, mas quero tentar.

Não saberia escrever como a Fernanda Young, de maneira nenhuma. Mas a inteligência dela me absorve, me arrebata. Eu tô sem chão por lembrar que ela já não existe mais. Digo, em carne e osso, viva. Que matéria brilhante ela era! Linda com a rainha do jogo de xadrez tatuada na palma da mão direita. Corajosa, célebre, com o mapa do Brasil no braço. Eu não tenho tatuagens. Posso até roubar suas ideias do vídeo da Lilian Pacce.

Quero ser Fernanda Young. Linda, irretocável, engraçada. Não sou engraçado. As pessoas riem de mim por pena. Mas eu arrisco. Faço umas tiradas péssimas na mesa do bar e todos se entreolham como se eu fosse um completo idiota. E talvez eu seja mesmo. Fernanda me ensinou que não se levar a sério é legal. Estou no caminho. Tento muito.

Quero viver de escrita. Digo, não sei como. Quero fazer muitas coisas. Escrever livros é uma boa. Escrever crônicas para um jornal? Pode ser. A melhor oportunidade que aparecer irei aproveitar. Sou egocêntrico demais. Tenho muito o que dizer. Muito de mim foi abafado por muito tempo. Agora o mundo que me aguente.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Zona relapsa















Final de semestre é sempre essa correria: procrastinação, ansiedade, prazos apertando e professores cheios de expectativas com as entregas. Tenho feito o meu migué. E por conta da pandemia, tudo está muito confuso. 

Me sinto numa zona relapsa. Meus amigos — tão exaustos quanto eu — mandam mensagens exaustivas e me obrigam a deixá-los sem respostas. Visualizo e não respondo, sem peso. O país se retroalimenta na tensão de 2020 e a pandemia ameaça uma segunda onda para nos atormentar. O número de mortos ultrapassa 180 mil e os professores mandam mensagens que me deixam fora do ar. Nada se encaixa. Não sei onde irei parar. Ou pirar. 

Na verdade, talvez eu já esteja pirado, em um lugar que não sei qual é. Estou fora de mim. Faço o EAD com barrinhas de vitamina C na mesa do computador e me esforço para não adormecer. 

A cabeça gira, o nariz escorre, a TV dá medo. Não sei o que fazer. Sento e espero o terror passar, respirando abafado, no quarto. A infecção psicológica sorri e acena.

O calendário traz notícias: natal já vem aí. O mundo vai celebrar o nascimento de Cristo em um ano mórbido, com milhares de vítimas fatais. E o coronavírus se anima, nas esquinas da avenida Sete, ansioso pelos compradores de panetones em pontos comerciais. O clima natalino chegará regado à muitas aglomerações, peito de peru com calda de laranja e superlotação das UTIs.

Espero que consigamos levar algo bom de 2020. Quero que tudo o que eu quero caiba no tempo que preciso. Quero saúde, curas, champanhes e dias melhores. E que o ano atual, mesmo aos quarenta e cinco do segundo tempo, surpreenda todos com um plot twist positivo para quem cultiva a fé e a esperança.