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quarta-feira, 18 de agosto de 2021

O MAESTRO FALOU DE SUAS PAIXÕES


Bati na porta de sua sala com medo de incomodar. Apesar de querer conhecê-lo, eu sabia da magnitude atmosférica que eu iria encontrar. Era ele, sentado entre seus aparelhos, seguro de sua relevância e majestosidade.

Empurrei a porta de vidro e soltei um oi delicado. Ele estava aflito com um cisco que caíra em seu olho direito e mal pôde se virar para me ver.  "Oi, pode entrar", disse enquanto se esticava para trás, lavando-se com colírio.

"Bom dia. Eu sou Fabio. Me aconselharam a falar com o senhor."

"Sente-se. O que tens a dizer?", se virou com os cílios encharcados.

"Na verdade, não tenho o que dizer. Prefiro te ouvir".

E assim ele desatou a falar. Sentei num banquinho amarelo à sua frente e arregalei os olhos por cima da máscara, atento à tudo o que ele dizia. O maestro falou de suas paixões e de como a sétima arte surgira em sua vida do nada, por acaso, enquanto trabalhava de eletricista nas ruas de Ondina. Conheceu o cineasta Glauber Rocha e percebeu que dali em diante sua vida ganharia um novo sentido, com muitos rolos de películas. Mostrou altivez quando se lembrara do valor imensurável que é estar de posse da 2ª câmera dos irmãos Lumière, feita em 1915, a famosa caixa de fósforos vinda de Paris. Meus olhos brilharam.

Ainda com a pupila irritada me conduziu para outra sala cheia de caixas. Tudo organizado com zelo, recheado de memórias importantes e parte de nossa história na ponta da língua. Vi muitos cabos, fios, projetores, mesas de corte, câmeras de todo tipo, microfones, discos, fitas pornográficas, monitores de referência e cartazes do cinema nacional. Era um verdadeiro baú do tesouro. Ele esbanjava orgulho do seu acervo e me envolvia com seus encantos de períodos que não vivi.

Apesar da idade e andar vagaroso, falava quantificações com precisão de um jeito lúcido, conhecendo seus itens como a palma da mão. Se não me engano, 3.872 materiais colecionados, contando com a guarda de duas das dez câmeras com manivela, construídas na Alemanha. E apesar de sua grandeza em ser respeitado no meio e ganhar novos itens para seus arquivos, lamentava não poder oferecer-lhes espaço melhor na cidade de Salvador.

Nosso primeiro contato me proporcionou uma mistura de emoções. Ao mesmo tempo em que me alegro por tê-lo visto aqui, ainda vivo e lúcido o bastante para reclamar articuladamente dos ciscos que caem no olho direito, lamento o fato de não poder alegrá-lo com minhas próprias ações, fazendo com que seus cerca de 3.872 itens sejam salvaguardados como lhes é necessário.

Roque Araújo ainda se mantém de pé. A escritura fílmica de nossa história está preservada em seus acervos. E no que tange ao meu bem querer, levarei sua luta comigo do jeito que eu puder.



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